Para mostrar como as restrições à liberdade de expressão e a intervenção do governo argentino em vários setores afetam o país, O GLOBO iniciou no domingo a série de reportagens intitulada “Liberdade Amordaçada”. Os textos estão sendo compartilhados com mais dez jornais da América Latina que, como O GLOBO, integram o Grupo de Diarios América (GDA).
Janaína Figueiredo
Correspondente do GLOBO/GDA
BUENOS AIRES - Há cerca de três
anos, o secretário de Comércio Interior argentino, Guillermo Moreno, o mesmo
funcionário que está à frente da intervenção no Indec (o IBGE local) e da
campanha contra meios de comunicação privados, principalmente o grupo Clarín,
assegurou durante uma reunião de diretores da empresa Papel Prensa, que fornece
papel a 95% dos jornais argentinos, que tinha em mãos um plano para transferir
o controle da companhia ao Estado. Fiel a seu estilo pouco diplomático, Moreno
assegurou que se algum membro da diretoria revelasse o que estava sendo
discutido, seria vítima “de meus rapazes, especialistas em quebrar colunas”. As
ameaças do funcionário foram denunciadas por Carlos Collaso, a época integrante
do Conselho de Vigilância da Papel Prensa, mas nada aconteceu.
As pressões do governo
Kirchner sobre a empresa, administrada pelo Clarín (49%), La Nación (22,6%) e o
Estado (28%), foram constantes e alcançaram seu auge este mês, com a
apresentação de um projeto de lei que prevê a expropriação de 24% das ações da
companhia.
Se o documento, assinado pelos
deputados ultrakirchneristas Diana Conti (a mesma que defende uma terceira
reeleição da presidente Cristina Kirchner, porque não faz sentido uma
“alternância boba” no poder) e Carlos Kunkel, entre outros, virar lei, o Estado
passará a administrar 52% das ações da Papel Prensa e terá, como o presidente
Juan Domingo Perón em seus primeiros dois governos (1946-1955), total controle
do papel usado pelos jornais.
No segundo governo de Cristina
(iniciado em dezembro de 2011), foi aprovada uma lei que deixou em poder do
Estado as autorizações para importar papel. Se o novo projeto dos kirchneristas
também obtiver sinal verde do Parlamento, o Estado poderá, ainda, comandar a produção,
comercialização e distribuição do papel jornal.
Nos anos 40 e 50, com Perón em
seu momento de glória, alguns jornais como “La Nación” circularam com apenas
seis páginas (na época, não havia fabricação, apenas importação). As
semelhanças com o passado causam profunda preocupação entre jornalistas locais.
— Moreno passaria a controlar
o papel dos jornais e poderia condicionar a entrega do papel à posição de
nossos jornais sobre políticas do governo — disse o diretor de Negócios do “La
Nación”, Eduardo Lomanto.
Para ele, o projeto de lei
26.736 não tem qualquer lógica econômica, porque hoje o preço do papel de
jornal está caindo na Argentina e no mundo, e “ninguém tem dificuldade de
acesso, não se justifica uma intervenção estatal”.
— Estamos vendo coisas que
jamais pensamos que veríamos. As semelhanças com a Venezuela são cada vez mais
evidentes. O que nos diferencia é que a Justiça não perdeu total independência
e ainda existe meios também independentes —afirmou Lomanto.
O projeto oficialista também
gera temor em jornais como o “El Cronista”, que importa 100% do papel que usa e
já enfrenta restrições com a lei sobre compras externas. Desde que estão
vigentes as novas medidas, explicou o diretor de redação, Fernando González,
“não podemos mais estocar papel, como fazíamos antes, para aproveitar momentos
em que o preço está mais baixo. Somos obrigados a respeitar uma cota máxima”.
González concorda com Lamonte sobre o risco de caminhar para um modelo cada vez
mais parecido ao venezuelano.
— É muito perigoso que o
Estado tenha o controle total do papel usado pelos jornais — frisou o diretor
do “El Cronista”.
A Papel Prensa foi comprada
pelos jornais “Clarín”, “La Nación” e “La Razón” (que depois vendeu sua parte),
em 1977, à família Graiver. Na época, a empresa ainda não estava pronta e os
três jornais tiveram de investir cerca de US$ 70 milhões para terminar as obras
de construção da fábrica (o temor é que, como no caso da Aerolíneas Argentinas
e Repsol-YPF, uma eventual expropriação não inclua qualquer tipo de
indenização).
A aquisição da companhia foi
questionada pela Casa Rosada em 2010, quando o governo denunciou a suposta
participação dos três diários na perseguição a membros da família Graiver
durante a última ditadura (1976-1983). Na época, a versão oficial da história
foi negada por Isidoro Graiver, irmão de David Graiver, anterior dono da
empresa (já falecido), e Sol, sua filha.
A denúncia do governo K foi
respaldada por Lidia Papaleo, viúva de David Graiver, que, em conversa com
Julio Saguier, dono do “La Nación”, confessou ter recebido uma oferta de US$ 2
milhões por parte do Executivo para falar (leia-se confirmar a história contada
pela Casa Rosada) sobre a venda da Papel Prensa. Uma parte do pagamento,
explicou Lidia no encontro com Saguier, estaria condicionada ao resultado de um
processo judicial iniciado pelo governo nos tribunais da cidade de La Plata,
ainda aberto.
— Nada do que foi denunciado pelo
governo foi provado. Isidoro e Sol desmentiram a versão oficial. Os Graiver
jamais nos acusaram de nada em nenhum dos processos dos quais participaram
pelos sequestros e torturas sofridas — assegurou o diretor de negócios do “La
Nación”.
De fato, após o retorno da
democracia, os Graiver foram acusados de serem vinculados ao movimento
Montoneros (braço armado da esquerda peronista) e esse foi, de acordo com todos
os processos judiciais nos quais foram mencionados, o motivo de sua perseguição
por parte dos militares.
O objetivo da Casa Rosada era
que o “Clarín” e o “La Nación” fossem condenados por suposta cumplicidade com
os militares para obrigar a família a vender a Papel Prensa. Com o processo
ainda na Justiça e com poucas possibilidades de prosperar, dada a falta de
provas, surgiu o projeto de expropriação da companhia.
— O objetivo de Moreno sempre
foi ficar com a empresa. Há quase quatro anos somos alvo de um assédio
permanente — disse Martin Etchevers, gerente de comunicações do grupo Clarín.
Ele lembrou que, ao longo de
todo este período, a dona do grupo, Ernestina Herrera de Noble, também foi
acusada de ter se apropriado de filhos de presos políticos desaparecidos.
O caso também continua aberto
na Justiça, apesar de não ter sido encontrada qualquer prova sobre o vínculo de
seus dois filhos adotivos, Marcela e Felipe, com desaparecidos políticos.
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ENTREVISTA A JORGE LANATA:
‘Do ar não poderão metirar nunca’
Apresentador vem denunciando casos de corrupção
envolvendo o governo Kirchner
Janaína Figueiredo
Correspondente do GLOBO/GDA
Buenos Aires Com as denúncias
de corrupção, o programa “Jornalismo para Todos” conseguiu ter mais audiência
que o campeonato nacional de futebol (transmitido pela TV estatal no mesmo
horário). Desde então, as pressões contra o Clarín, ao qual pertence o canal 13
de TV, que transmite o programa, se intensificaram e surgiram rumores de
intervenção.
Circulam rumores sobre uma
intervenção no grupo Clarín e foi apresentado no Congresso o projeto de
expropriação da empresa Papel Prensa. O senhor acha que ambas iniciativas serão
aplicadas?
Expropriar a Papel Prensa não
tenho dúvidas, o governo deverá fazer o possível para aprovar o projeto no
Congresso nas próximas semanas. Intervir no Clarín teria um custo alto, porque
seria uma medida absurda que certamente provocaria uma reação social, mas tudo
pode ser. Este governo quando perde poder não recua, pelo contrário, redobra a
aposta.
Seria a única maneira de tirar
seu programa do ar...
(Risos) Sim, seria. Mas do ar
não poderão me tirar nunca, continuarei falando até em festas de 15 anos. Não
vão nos calar.
O senhor sabe que hoje é o
maior pesadelo de Cristina?
(Risos) Posso imaginar.
Quando foi a última vez que
esteve com a presidente?
Estive mais vezes com Néstor.
A última vez que vi Cristina foi durante a campanha eleitoral de 2003. Naquela
época, eles me ligavam pedindo para vir a meu programa de TV. Eram outros
tempos.
Imaginou o que viria depois?
Não, e me arrependo de não ter
dado bola às pessoas que me diziam que eles fariam no país a mesma coisa que
fizeram em Santa Cruz, controlar a mídia, a Justiça, enfim, tudo.
Muitos já falam no fim do
kirchnerismo, o que viria depois?
Acho que este peronismo será
derrotado por um peronismo de direita. Porque, mesmo que seja mentira, no
imaginário, o governo representa o progressismo e isso dificulta as
possibilidades dos partidos de esquerda e centro-esquerda. Quem pode
derrotá-los? Alguém com um discurso conciliador. Isso seria Scioli (governador
de Buenos Aires), De la Sota (governador de Córdoba) ou Massa (prefeito do
município de Tigre, na província de Buenos Aires).
O senhor acredita que outros
governadores começarão a se distanciar do governo?
O peronismo funciona de uma
maneira muito simples, a mesma coisa aconteceu na época de Menem. Eles se
alinham com os que têm o poder. Vão onde está o poder e hoje muitos estão com
um pé fora do barco.
Como é Cristina?
Uma pessoa estranha, que não
tem amigas, tem um relacionamento complicado com sua família e não ouve
ninguém. Ninguém diz nada a Cristina, todos ouvem Cristina. É uma pessoa que
tem pouca conexão com o povo. A vejo cada vez mais autista, não registra o que
está acontecendo a seu redor.